A Cultura Popular na Idade Moderna e o Auto da Compadecida: uma apreciação bibliográfica



“Cultura” é uma palavra imprecisa, com muitas definições correntes; a minha definição é a de “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados”. A cultura nessa acepção faz parte de todo um modo de vida, mas não é idêntica a ele. (Peter Burke[1])  


Escrito em 1955 e encenado, pela primeira vez, no Teatro Santa Isabel em Recife, em 1956, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, apresenta inúmeros ideários da tradição cultural nordestina brasileira. Visto que na obra o autor se apropria da oralidade e da literatura cordelística popular para compor sua própria produção artística. Nesse texto iremos desenvolver uma breve reflexão sobre este autor e as práticas culturais populares europeias da Idade Moderna, abordas pelo historiador Peter Burke na obra: “Cultura popular na Idade Moderna”. 

A reflexão da Cultura Popular em história, no entanto, é densamente dotada de interpretações dialéticas. O próprio Peter Burke, em sua referida obra, faz críticas bastante pontuais sobre o tema ao longo de todo o livro, especialmente no prólogo da edição publicada pela editora Companhia das Letras em 2010. Basicamente, o conceito teórico utilizado pelo historiador inglês focaliza grupos sociais específicos a partir das suas práticas culturais. 

Por outro lado, considera-se cultura popular nordestina, nesta reflexão, um conceito mais genérico, em que as estórias anônimas, transmitidas através da oralidade, as crenças sertanejas e arte circense da primeira metade do século XX do nordeste, o compõe. Como enfatiza o próprio Ariano Suassuna, na edição 2012 publicada pela editora Nova Fronteira: “O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste [...] o autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno”[2]

Ao analisar a transmissão da cultura popular europeia na Idade Moderna, Burke menciona que havia certos grupos de profissionais responsáveis por transmitir os imaginários populares através de seus ofícios. Entre eles dramaturgos, acrobatas, músicos, palhaços e afins, que perambulavam ao longo de todo velho continente a exibir suas apresentações às camadas sociais mais pobres. Em muitos casos, os roteiros desses números eram prescritos por meio da transmissão de uma da tradição familiar dos artistas e do contexto cultural destes. Dessa forma, a autoria precisa das várias manifestações artísticas populares desse período é de difícil definição, principalmente se considerarmos ainda que a cada nova apresentação o artista, usando de seus interesses e inspirações individuais, poderia dar novas interpretações aos motivos artísticos tradicionais. 

Desse modo, podemos fazer certas aproximações entre a obra de Suassuna e a dos artistas da Europa da Idade Moderna, visto que em ambos os casos a cultura popular de seus contextos históricos são as “progenitoras” das criações artísticas. Por exemplo, a personagem protagonista do Auto da Compadecida, João Grilo, está diretamente ligada a Pedro Malazarte, ícone de vários contos tradicionais populares brasileiros, que também é conhecido na Península Ibérica sobre o nome de Pedro Urdemalas. Mais ainda, ao longo de toda a peça inúmeros trechos de estórias regionais cordelísticas são reinterpretadas pela autor, como no caso do “gato que descome dinheiro” ou da “gaita com mágica (com poder de ressureição)”. 

Enfim, a leitura do  “Auto da Compadecida” e de “Cultura popular na Idade Moderna” é um ótimo convite à reflexão da cultura e das manifestações artísticas populares em distintos contextos históricos.
Boa leitura!  


[1] BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 11.
[2] SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 15.

                                                     

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